*Por Juliana de Andrade (Projeto Coraje - UESPI)
Começo essas linhas por um título
sem pontuação. Sem saber se a oração acima se trata de uma afirmação
necessária, implicada no mundo, ou de uma indagação constante que me atravessa,
cá em um dos exercícios indispensáveis à pretensão de horizontalidade – a
autocrítica - venho repensando quais as razões determinantes pra me
auto-afirmar enquanto defensora dos direitos das mulheres. É imensurável a
importância do feminismo na minha vida, como mulher, como indivíduo que direta
ou indiretamente já foi e é ainda afetado pela vigência dos padrões hegemônicos
de subjugação do feminino. Mas concluo que as razões estão além. Estão no
outro. Na verdade, em outras, tão gente/mulheres quanto eu.
E essa conclusão
vem fácil. Ganha corpo no simples estar viva no mundo e se permitir olhar pros
lados. Não consigo mais empreender um passo que seja nas ruas sem observar os
movimentos das pessoas, suas manifestações, perfeitamente encaixadas na
dinâmica social excludente que nos é sobreposta. Explico-me. Na última segunda
feira, dia 12, quando assistia à mesa redonda que deu início à V Semana Social
Brasileira, com debate sobre participação popular na construção do Estado
Democrático e sobre a Campanha em defesa das Terras, Águas e Povos do Piauí,
debate esse conduzido por duas aguerridas professoras piauienses, diga-se de
passagem, não pude deixar de observar a quantidade de mulheres que daquele
espaço tomavam assento, como expectadoras. Eram trabalhadoras rurais do
assentamento Salitre Chileno I, que há cinco anos ocupa uma propriedade privada
localizada no km 25 da BR 316, entre
Teresina e Demerval Lobão, região da Grande Teresina, em condições
subumanas de existência. Faziam-se presentes para mais uma luta travadanome de
direitos que provavelmente sequer conheçam o nome, mas primariamente a
necessidade. Eram muitas: senhoras e jovens, as primeiras pensando no bem estar
dos filhos adultos e netos, as segundas, acompanhadas de seus rebentos.
Sabem-se lá quantos afazeres domésticos deixaram para trás a fim de ocupar um
espaço político tão vital pros dias que ainda estão por nascer.
O que mais me
chamou atenção, entretanto, foi o esvaziamento constante do auditório por essas
mulheres. Os cuidados com as crianças ou a preocupação com seus esposos lhes
tiravam recorrentemente o foco do debate. Estavam ali desde cedo, com sede, com
fome. Aos poucos, o ato de hastear a bandeira do movimento, inicialmente em
punhos femininos, passou a ser realizado por homens. As vozes entoadas nos
gritos de luta já não eram mais tão agudas. O grave masculino tomava de conta.
Como não identificar que se trata de clara evidência da exclusão, gradativa ou
não, da mulher nos espaços de diálogo, de construção intelectual, de desenvolvimento
enquanto individuo político/social?
O que me leva a
parir esse texto e observar a gritante necessidade de um olhar mais profundo
para as mulheres em uma sociedade patriarcal é que fica uma certeza de estarmos
vivendo eternamente em um ciclo de dependência, de submissão e pobreza desses
indivíduos. Para mim é fácil falar/pensar/lutar em/por emancipação. Ou pelo
menos, é um processo bem menos dificultado do que para essas assentadas ou para
tantas outras mulheres em condições precárias de vida. A despeito das críticas,
tive acesso aos meios de produção, de vida e à educação formal, ainda que
reprodutora de desigualdades. Com todas as suas limitações, foi esse privilégio
a mim dado que me permitiu sentar à frente de um notebook, ter acesso às
informações de que preciso, escrever essas linhas. Sem contar com toda uma
estrutura (que devo admitir) mais do que básica no meu âmbito familiar, que me
propicia ter tempo, energia e foco para produzir. Para essas mulheres, sujeitos
de uma realidade social distinta da minha, parece impossível expressar-se como
o faço agora.
É mais do que poder
(a mim concedido, em contraposição ao direito, delas tolhido) de expressão. Eu
quero tratar aqui do direito de sonhar e ter meios efetivos de concretizar seus
desejos. Quero falar da oportunidade de enxergar um horizonte de transformação,
que tenha também como objeto desenhado, além da construção de uma vida com
dignidade, a superação de tantas outras desigualdades estruturadas a partir da
desigualdade de gênero. Pautas históricas dos movimentos feministas como a
legalização do aborto, a liberdade sexual das mulheres, o direito de decisão
sobre seus corpos e vidas, a ocupação dos espaços políticos, penso, devem
parecer idioma estrangeiro, linguagem indecifrável para essas trabalhadoras e
outras tantas companheiras de gênero oriundas das classes populares.
O que chega a doer,
tamanha a indignação que causa, é essa determinação tão certa, absoluta, do
lugar da mulher na sociedade. Estamos tão submersos nessa compreensão torta de
mundo e de vida, tão vendados, que é quase improvável perceber o quanto a
lógica dominante nos afeta nas mínimas práticas, nos nossos sentimentos, até no
que acabamos por entender por felicidade e realização. Não tenho dúvidas de que
essas trabalhadoras encontram suas satisfações servindo à família. Não me
atrevo a questionar a certeza da não marginalização e a segurança que mulheres
vítimas de violência doméstica devem carregar ao não abandonar o lar, com seus
filhos por criar (o lar que, segundo dados recentes, ainda é objeto de posse
dos maridos agressores). Essa definição do papel feminino, tão irracionalmente
absorvida, é a principal responsável por usurpar de tantas mulheres a chance de
construção de um pensamento novo, de politização. Quem pode questionar a ordem
se desdobrando entre conquistar o pão dos filhos e seus cuidados?
Pesquisando um
pouco mais, me deparo com falas de mulheres que se envolveram com o tráfico no
intuito de dar sustento aos filhos, abandonadas que já foram pelos companheiros.
Dando um passeio despretensioso no centro comercial da cidade, é impossível não
notar como as mulheres dominam os setores de empregabilidade informal, ganhando
salários irrisórios. Tomando um ônibus, não consigo deixar de pensar que logo
estarei fazendo parte de um diálogo político, com homens e mulheres, planejando
o que fazer do futuro, lendo um livro, repensando o mundo e a mim mesma. Mas
nesse mesmo ônibus, disputo apertadamente espaço com outras mulheres, tão
diferentes de mim, cansadas e de olheiras alarmantes, marcadas pela jornada
diária dividida entre trabalho, filhos e marido, prontas para mais uma rotina
de trabalho, despreocupadas com maquiagem e saltos altos. Às vezes feridas na
pele, pelo homem que amam, outras vezes, feridas na alma, pela vida. Todas, sem
perspectivas de emancipação efetiva.
É diante desse
quadro e da constatação de que a pobreza, além de cor, também tem gênero, que
preciso (e de outro jeito não poderia ser) me entender feminista. Penso, na
verdade, que ser feminista deveria ser pressuposto de qualquer pessoa que lute
por transformação da realidade posta. Como falar em superação das desigualdades
sem, contudo, combater as opressões de gênero que aprofundam o ciclo de
exclusão de seres humanos da participação da vida livre, desamarrada?
Chego ao fim desse
texto querendo mesmo é fazer uma observação. Ao longo do tempo, pude perceber
que as discussões de gênero ainda são tímidas em muitos espaços ocupados por
assessores e educadores populares. Não raro, as reações de estranhamento ao
tema são bem visíveis. Longe de querer apontar o dedo para as pessoas,
entendendo que esse debate é de fato dificultoso, porque mesmo nós, defensores
de seres humanos, também somos frutos da cultura política posta, fica aqui o
desejo de contribuir, de alguma forma, para o despertar para a importância
dessa luta que não é minha só, mas de todos nós, homens e mulheres. Porque ser
feminista é uma necessidade. Sem mais interrogações. Ponto final.